Foto: Alex Popovkin/Wikimedia Commons
Encontrado em 2021 no Parque Bosque dos Jequitibás, região central de Campinas, o corpo de uma fêmea de gambá-de-orelha-branca (Didelphis albiventris), mamífero também conhecido como saruê ou sariguê, teve a causa da morte determinada por um grupo de pesquisadores do Instituto Adolfo Lutz e da Universidade de São Paulo (USP), além de profissionais da saúde de instituições públicas dos municípios de São Paulo e Campinas: meningoencefalite causada por infecção pelo vírus da raiva.
Publicado na revista Emerging Infectious Diseases, o resultado acende um alerta sobre a presença do vírus, mortal para humanos, no ambiente urbano.
“A variante da raiva de cães não é mais detectada no Estado de São Paulo, por conta do sucesso das campanhas de vacinação de animais domésticos. Por isso, é importante monitorar outros mamíferos que possam ser vetores do vírus, principalmente animais negligenciados por esse tipo de vigilância, como os gambás”, alerta Eduardo Ferreira Machado, que conduziu o trabalho durante seu doutorado na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ-USP) com bolsa da FAPESP.
Os sinais neurológicos da doença detectados no animal sugerem a forma que causa paralisia e é transmitida por morcegos. A detecção de partículas virais em outros órgãos indicou, ainda, que a infecção estava na fase de espalhamento sistêmico.
O gambá foi um dos 22 testados para raiva e outras doenças pela equipe em 2021, no âmbito de um projeto de vigilância epidemiológica realizado em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo e o Centro de Controle de Zoonoses de Campinas.
No mesmo ano, a equipe analisou ainda 930 morcegos, 30 deles positivos para a raiva. Entre os infectados, a maior parte (17 ou 56,7%) era de espécies frugívoras do gênero Artibeus. Os outros 13 (43,4%) eram insetívoros de três gêneros diferentes.
Foto: Eduardo Ferreira Machado
PONTE PARA OS HUMANOS – A transmissão entre morcegos e gambás pode se dar pela interação entre os animais, que competem por hábitats tanto naturais (como alto de árvores) quanto aqueles fornecidos por humanos (sótãos de casas, por exemplo).
Em 2014, um caso de raiva em um gato foi notificado em Campinas (SP). O vírus era de uma variante encontrada em morcegos. Assim como os gatos, os gambás também podem predar esses animais, o que leva à hipótese mais provável para a transmissão.
Os pesquisadores destacam ainda que, dos 22 gambás analisados, 15 haviam sido mortos por ataques de cães. “Os cachorros poderiam ser uma ponte entre os gambás e nós, trazendo a raiva e outras doenças para os humanos. Por isso, também, a importância de monitorar os animais silvestres que vivem nas cidades”, completa Machado.
Segundo José Luiz Catão Dias, professor da FMVZ-USP e orientador de Machado, os gambás são estratégicos para esse tipo de vigilância, uma vez que se adaptam muito bem a ambientes urbanos, sem necessariamente deixar de interagir com áreas silvestres.
“Mesmo assim, são muito negligenciados. Não se sabe quase nada das doenças que eles podem ter e, eventualmente, transmitir para nós”, diz o pesquisador, que coordena o projeto “Patologia comparada e investigação de doenças em marsupiais neotropicais, ordem Didelphimorphia: uma proposta de vigilância em um grupo de mamíferos negligenciado nos estudos de sanidade de fauna selvagem”, apoiado pela FAPESP.
Os autores lembram que um estudo dos anos 1960 sugeriu que os gambás seriam resistentes ao vírus da raiva, um argumento que ganhou força pelo fato de haver relatos escassos de casos da doença nesses animais.
A baixa temperatura corporal (entre 34,4° C e 36,1° C) e as poucas chances de sobreviverem a um ataque de um animal com raiva foram sugeridos como as prováveis causas da baixa ocorrência da doença em gambás na América do Norte, uma vez que carnívoros selvagens são reservatórios naturais do vírus.
O estudo brasileiro, porém, mostra que a transmissão ocorre e precisa ser monitorada.
Os pesquisadores seguem investigando animais mortos que chegam até o Centro de Patologia do Instituto Adolfo Lutz, tanto para monitorar a presença de raiva como de outras doenças.
Uma das ideias para continuar os estudos é firmar parcerias com instituições em outros países que realizem a vigilância de marsupiais como os gambás, por exemplo, a Austrália.
“Lá eles possuem bastante experiência nessa área e podemos fazer comparações que sejam úteis para os dois países”, encerra Catão.
O artigo Naturally Acquired Rabies in White-Eared Opossum, Brazil pode ser lido em: wwwnc.cdc.gov/eid/article/29/12/23-0373_article.
Fonte: Agência FAPESP